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domingo, 8 de junho de 2014

A HUMANA TORTURA QUE MATOU FREI TITO

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A tortura não foi inventada por alienígenas - tampouco foi aperfeiçoada e colocada em prática, em diferentes períodos históricos, por entidades demoníacas, habitantes dos infernos. É uma legítima criação do Homo sapiens, que tem por objetivo primordial impor maus tratos e dores insuportáveis, de diferentes naturezas, aos semelhantes, para alcançar vantagens e informações que não seriam obtidas apenas com perguntas ou interrogatórios tradicionais. Tudo o que se quer é humilhar e quebrar o outro, física e emocionalmente. Representa o ápice da manifestação de sentimentos humanos brutalmente violentos, destrutivos. Para o torturador, não há limites. Não há regras. Não há freios morais.

Foram pessoas de carne e osso e dotadas de racionalidade, como o delegado Sergio Paranhos Fleury e o capitão Benone de Arruda Albernaz, que torturaram barbaramente o frei Tito de Alencar, quando o dominicano esteve preso no Departamento de Ordem Política e Social (Deops) e no Presídio Tiradentes, logo após o assassinato do guerrilheiro Carlos Marighella, em 4 de novembro de 1969. Tito fazia parte do esquema de apoio da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização comandada pelo inimigo número um da ditadura civil-militar brasileira. A biografia "Um homem torturado - Nos passos de frei Tito de Alencar", escrita por Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles, tece a história dolorosa desse calvário de sevícias vivido pelo religioso, que só chegou ao fim com o suicídio. Atormentado, sem conseguir se livrar dos fantasmas dos torturadores, Tito enforcou-se, dependurando-se numa árvore perto de um convento na região de Lyon, na França, em 10 de agosto de 1974.

A obra combina pesquisa cuidadosa com narrativa que consegue recriar a atmosfera daquele período de terror, transportando um agoniado leitor para os diferentes momentos da vida de Tito - uma das histórias mais terríveis dos anos de chumbo. A militância política, o cotidiano no convento das Perdizes em São Paulo, a luta contra a ditadura, a organização do Congresso da União Nacional dos Estudantes em 1968, a participação na organização revolucionária liderada por Marighella, o sofrimento na prisão, a liberdade conquistada com o sequestro do embaixador suíço, a passagem pelo Chile e o exílio na França já foram tratados em outras obras, como "Batismo de sangue", do também dominicano Frei Beto. As autoras, porém, vão além, e oferecem detalhes preciosos sobre todos esses episódios. "O frei Tito que a gente descobriu é um jovem militante, fascinado por Filosofia, Ciências Sociais e pela Teologia da Libertação, e também por um Evangelho engajado, que veio para salvar o oprimido. Os religiosos que conviveram com o Tito no Brasil e na França nos abriram todos os arquivos, nos forneceram fitas cassete que ficaram guardadas por 40 anos", conta Leneide, em sonora disponível na revista eletrônica Giz, do Sindicato dos Professores de São Paulo.

Outro diferencial do livro está na sensibilidade e na profundidade com que as autoras tratam a questão da tortura, sem tabus ou pudores e em distintos momentos da história, até chegar ao capítulo final, dedicado a um depoimento do psiquiatra Jean-Claude Rolland, que cuidou de Tito na França. "Ao receber Tito na emergência, o médico via pela primeira vez uma vítima da tortura . Começava ali sua descoberta de um sofrimento atroz e do que ele chama de 'sintomas-testemunho'. Nem a faculdade de medicina nem sua prática de psiquiatra o tinham preparado para casos como o de Tito", escrevem as autoras. Sobre a tortura, Rolland afirma que "é uma prática que se desenvolve em bases que já existem. Há, no fundo de nós mesmos, muito recalcada, uma capacidade de destruir o outro, e o torturador apenas ativa essa capacidade de destruição. Por exemplo, na Argélia, as pessoas que torturavam tinham feito estudos avançados, tinham uma moral, mas num dado momento, por razões diversas, ativaram o que estava latente. A tortura mostra que há no homem o prazer de destruir o outro".

Apesar de a tortura ser considerada crime imprescritível e de lesa-humanidade, em 2010, não custa lembrar, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os torturadores da ditadura brasileira não podem ser punidos. Estão protegidos pela Lei da Anistia. A humana tortura que matou frei Tito continua sendo praticada com frequência no ultrapassado e carcomido sistema carcerário nacional, em plena democracia, agora contra os prisioneiros comuns. Tão grave e muito triste é observar que, não raro, diante da tragédia, prevalece o estrondoso silêncio da sociedade (quando não, pior, vem à tona o apoio efusivo e pestilento). Preferimos nos livrar barbaramente do que consideramos a escória da espécie. E assim seguimos.


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Ouça o depoimento da jornalista Leneide Duarte-Plon (revista Giz, Sindicato dos Professores de São Paulo, abril de 2014).